Em poucos dias, dezenas de milhões de pessoas, pelo mundo afora, assistiram ao vídeo de Susan Boyle cantando I Dreamed a Dream (eu sonhei um sonho). Assistiram e choraram lágrimas comovidas. Acesse a internet e veja uma das versões (por exemplo, www.you tube.com/ watch?v= 8OcQ9A-5noM). Se quiser mais, assista à entrevista de Susan Boyle à rede americana CBS, durante a qual Boyle canta um trecho da música a capela (watching-tv.ew.com/ 2009/ 04/susan-boyle-cbs.html). Susan Boyle se qualificou nas preliminares para participar de Britain's Got Talent (a Grã-Bretanha tem talento), que é mais uma versão (inglesa) de American Idol, o programa de televisão que começou nos EUA e foi repetido em vários países – no Brasil, Ídolos, na TV Record. Trata-se, a cada ano, de premiar um cantor ou uma cantora, descobrindo novos talentos. Na verdade, a seleção para chegar até a final talvez seja o que mais diverte as plateias, nos teatros de gravação ou em casa: o vexame da maioria dos concorrentes funciona como um bálsamo para todas as covardias que nos impedem de correr atrás de nossos sonhos. Susan Boyle entrou no palco como uma espécie de anticlímax; ela era tudo o que não se espera de uma aspirante a estrela: quase 48 anos, solteirona, desempregada, vestida (disse um amigo estilista) como a rainha Elizabeth se ela fosse pobre, “gordinha” e “feinha”. Os diminutivos indicam que sua aparência não era extraordinária nem negativamente, mas a tornava transparente: aquela figura papel-de-parede, de quem ninguém se lembra se ela estava na festa ou não. Para completar, respondendo às perguntas de Simon Cowell (que preside o júri), ela pareceu quase tola e um tanto vulgar, balançando os quadris para dar mostra de sua juventude de espírito. Quando Susan Boyle anunciou que seu sonho era ser cantora como Elaine Page (a inesquecível Grizabella de Cats, em Londres, em 1981), o júri e a plateia não esconderam seu desdém. Aí Susan Boyle começou a cantar. A performance foi propriamente incrível; por um instante, pensei que Boyle estivesse apenas mexendo os lábios enquanto tocava uma gravação: uma voz forte, limpa, segura e expressiva, fiel às emoções que se alternam ao longo das letras. Também, a música que Susan Boyle escolheu (letras de Alain Boublil) contribuiu para transformar sua performance numa espécie de exemplo moral: fala de um sonho antigo, sonhado quando “a esperança falava alto e a vida valia a pena”, na época em que “os sonhos são criados, usados e desperdiçados”; mas há “tempestades” que “transformam nossos sonhos em vergonha”, e, no fim, em regra, a vida massacra os sonhos que sonhamos. Então, qual é a moral da performance? Para Coutinho, a moral é que, na vida, não basta se esforçar: é preciso ter sorte. Entendo assim: Susan, até aqui, não teve sorte, a gente se comove porque é tarde demais ou porque, enfim, o destino a encontrou em sua aldeia perdida. Para mim, a moral é outra. Não sei se Susan teve sorte ou não. Cuidar longamente da mãe doente e cantar com os amigos no karaokê da vila é uma vida que pode valer a pena, talvez mais do que uma vida nas luzes da ribalta. O que me comoveu tem mais a ver com a coragem e a resistência de seu sonho. Os entrevistadores da CBS perguntaram a Susan Boyle como ela conseguiu se concentrar e cantar, embora percebesse que o júri e a plateia não a levavam a sério e já estavam antecipando a zombaria. Ela respondeu, com simplicidade: “É a gente que tem que se levar a sério”.
Contardo Calligaris, (Jornal A Tarde: 23/04/09)
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